II. 3.1. CONSENSO E DESACORDO O papel das minorias discordantes
pode funcionar como um imprescindível equilíbrio de poder. Que dizer do seu
papel libertador da opressão e discriminação arbitrárias que a história
testemunha ao longo dos tempos? Um desacordo moralmente
fundamentado tende a desencadear um consenso moralmente justificado. E daqui
a sermos tentados a concluir que na origem da legitimidade democrática está
sempre um desacordo, vai um passo. Convém, contudo,
relembrar que os contra-exemplos são
suficientemente numerosos para não cairmos nessa tentação (Hittler opôs-se ao
consenso em Weimar). Parece, pois, indiscutível que não é o consenso ou o
desacordo o que fundamenta os direitos humanos ou a própria legitimidade. Só
os direitos humanos são eticamente aceitáveis. Consenso e desacordo não
podem existir na pureza singela da mútua negação do “porque sim” ou “porque
não”. É fundamental definir que jogos são moralmente admissíveis[1]. A
democracia representativa não faz sentido sem um espaço (de âmbito
constitucional) que proteja a dignidade humana, os direitos fundamentais, as
liberdades e garantias pessoais. Neste espaço não cabe a discordância, a
negociação ou a tolerância. A oposição ao consenso só pode ser exercida no
âmbito do negociável. Se assim não for, o “princípio da maioria”
transformar-se-á no “domínio da maioria”.[2] Kelsen defende que a forma de impedir o domínio da
maioria, a que chama também “casualidade da aritmética”,[3] passa
pelo respeito desse mesmo princípio. O espaço de âmbito constitucional
tem vindo a alargar-se ao longo dos tempos. Não é de estranhar que tal
aconteça. A primeira geração de direitos, de que é exemplo acabado o direito
à vida, é um olhar para o próprio umbigo. As futuras gerações de direitos
estenderam a sua preocupação a áreas que asseguram a manutenção e a qualidade
da vida protegida. O conceito de dignidade humana está agora para lá da sua
própria interioridade e do seu espaço físico. Passa pelo direito a um
ambiente não contaminado ou ao direito à individualidade genética. Uma
crescente consciencialização, resultado de uma vivência cada vez mais
multicultural, tende a alargar esse espaço privado. Questão
preocupante é saber se, em caso de violação e em
nome dos valores ofendidos, os meios empregues poderão ou não extravasar o
âmbito daquilo que se protege. O Estado, no âmbito normativo, pode
desencadear os mecanismos coercitivos que tem ao seu dispor. Ele tem o
monopólio da violência legítima. E o cidadão? Como pode reagir? Um acto do
poder político é genericamente sancionado nas urnas, o de um cidadão nos
tribunais. |
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[1] “Ao invés do raciocínio
lógico ou aritmético, o raciocínio moral é muitas vezes incapaz de produzir certeza,
justificada ou injustificada. Está facilmente sujeito a distorções provocadas quer
por factores sociais e pessoais moralmente irrelevantes, quer pelo erro
aberto”. Thomas Nagel, A Última Palavra, Gradiva, 1999, pp. 75.
[2] Hans Kelsen, , O
Problema do Parlamentarismo, São Paulo, 1993, pp. 134.